EM CRISTO SOMOS MAIS QUE VENCEDORES

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Juiz diz que “quem escreve acriano, além de descuidado e desinformado

Juiz diz que “quem escreve acriano, além de descuidado e desinformado

Escrito por José Augusto Cunha Fontes da Silva**
18-Out-2009

Acadêmicos, membros de institutos, de grupos e de casas ligadas às Letras e à Educação, em bom número, publicam livros didáticos, gramáticas, dicionários e obras afins. A eles é interessante renovar, em dados períodos, as edições de suas obras, por razões técnicas, editoriais e comerciais. O surgimento de uma reforma na língua, como, por exemplo, o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, tão comentado por estes tempos em razão das muitas novidades, das mudanças aqui e ali, das normas fixadas e também de diversas esquisitas regras novas, algumas até engraçadas, outras imponderáveis, até injustificáveis, é um momento assim bastante propício à renovação de obras e ao lançamento de outras, como dicionários, gramáticas e guias. E essas ocasiões são propícias exatamente porque o sucesso de vendas é bem palpável. Ainda que as reformas digam pouco, ou quase nada, as gramáticas e dicionários lucram bem, tanto aqui quanto além mar. Mas há limites que devem ser respeitados, em se tratando de determinadas grafias, limites tais que não podem ser suplantados por interesse ou argumento secundário, seja qual for, ainda que internacional. Tais limites marcam tradições etimológicas, históricas e culturais, dentre outras várias, como acontece com grafias que denotam a naturalidade de um povo. A palavra acreano é uma dessas. O Acordo, a Reforma e seus ilustres articuladores, invariavelmente, sabem disso. Têm que saber. E se ignoram, é porque são e foram muito descuidados, ocupados com outros interesses. Mas o importante é saber que as línguas são do povo, dos seus falantes, e não de acadêmicos ou gramáticos. As línguas têm contexto e história, têm tradições, e não apenas regras. O fundamental da linguagem é viabilizar a comunicação, e não, ao avesso, criar dificuldades, inventar regras. Estabelecer acriano como grafia correta (e pretensiosamente única), revela falta de conhecimento sobre a etimologia, a tradição e a história, tanto da palavra quanto do povo que ela representa. Além de falta de conhecimento, é pura falta de respeito! Já escrevemos meses atrás neste mesmo espaço sobre a grafia acreano e o alienígena acriano, esquisito e incabível. O texto está disponibilizado no site. Ali dissemos, dentre outras coisas, que essas reformas não devem ter comointenção modificar a tradição lingüística, tampouco alterar substancialmente a grafia de palavras vinculadas, por exemplo, pela historiografia ou pela tradição, ou vinculadas à naturalidade de um povo. Reforma como essa, com a intenção disfarçada de padronizar a escrita entre nações lusofônicas (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste) ou de buscar maior reconhecimento internacional, está baseada mesmo em interesses comerciais. Se o pressuposto do Acordo era unificar, esse pressuposto afundou lá pelo Tejo. Portugal, especificamente, que retrata a concepção da Língua Portuguesa, ainda não adotou efetivamente as regras da Reforma. Aliás, Portugal historicamente (como mencionamos no texto anterior) rejeitou regras gerais oriundas de reformas e até deu início a consolidação de regras bem peculiares, a seu talante. E nada há de extravagante nisso. A tradição lingüística, as situações históricas, as variações sociais em face dos falantes e os usos específicos de Portugal com relação ao Português são mesmo diferentes em relação à mesma aplicação no Brasil ou na Guiné-Bissau! Isto parece óbvio. É até possível unificar em linhas gerais, em usos genéricos, mas não é possível, sem máculas, estabelecer regras únicas para situações peculiares de casa país. Generalidades são burras, em regra. Se a academia para para o bom senso, a palavra acreano não para para dar passagem ao acriano, pois ele é alienígena. Você notou algo estranho nas linhas logo acima? Não explico, mas informo. Ocorreu que a Reforma retirou o acento que antes existia em pára. Por isso, esse para para, E aí o usuário da língua que se vire para entender. Pode? Vejamos alguns outros exemplos. Aqui no Brasil nós teremos que escrever a palavra corréu deste jeito. Ainda que cientes de escrever “certo”, também ficamos cientes da esquisitice. É uma grafia dúbia, feia, esquisita. Pouca gente vai entender o contexto. Corréu (que o editor do meu Word insiste em querer consertar), significa um réu que agiu em companhia de outro, em determinado fato considerado crime, em tese, e assim passou a ser chamado por haver sido denunciado em conjunto com o outro réu. Virou corréu. A palavra era escrita co-réu. Fica ao critério do leitor considerar qual a grafia mais simples para a comunicação no Brasil. E principalmente, se a Reforma ajudou ou complicou... E há muitas outras. Pense sobre coerdeiro e me diga o que você entende sobre tal palavra. Herdeiro sem ‘h’ e o hífen retirado dão ou não dão a impressão de referência a cordeiro? Antes era co-herdeiro. Pense, reflita muito, debata-se e me diga, era melhor antes? A Reforma facilitou? Voltemos ao acreano. Não é nem mais a possibilidade de ficar mantida a aceitação da dupla grafia, acriano e acreano. O Leitor conhece alguém que escrevia acriano, ao invés de acreano, antes dessa invencionice da Reforma? Havia a possibilidade da opção por uma ou outra grafia, mas eu tenho convicção de que sequer um por cento (1%) dos falantes do Português, no Brasil ou alhures, conhecia ou escrevia acriano. Nas escolas, no serviço público privado, na comunicação, nos jornais, nas conversas, nunca se viu acriano, sequer como opção considerável. E agora, é essa Reforma que vai mandar nos nossos usos e na nossa tradição? Então, pergunte-se o leitor, a quem e a que interessa essa regra nova? Qual a utilidade prática desse acordo? Com que base, seus mentores se acharam acima de tudo, a ponto de desrespeitar a significação histórica, cultural e etimológica de determinadas grafias? Nada de muito importante foi “unificado” com a tal mudança descuidada, mal pensada e desrespeitosa! Só filigranas. Tanto assim que a relutância dos portugueses persiste. E a de muitos brasileiros. Quanto aos acreanos, qualquer pesquisa pode demonstrar que a imensa maioria nem mesmo ouviu falar de acriano. E isso também comprova que tal grafia é alienígena. A palavra acreano representatradição, tem conteúdo histórico, é palavra vinculada e inteiramente ligada à naturalidade de um povo. É palavra patenteada pelo sentimento e consagrada pela etimologia. As línguas são usadas no convívio das pessoas, nas interações, na estruturação social, acompanhando a tradição histórica, exatamente, para facilitar o entendimento. A ortografia nada mais é que uma convenção sobre uma parte do uso da língua, relacionada à escrita. Por isto, mera reforma ortográfica não é capaz de gerar a mudança social muito maior que seria modificar a grafia da naturalidade de um povo . Como é óbvio, usos, costumes e tradição não acontecem por imposição! Só o uso reiterado pode provocar a história lingüística! Como dito no texto anterior, acreano diz respeito a uma naturalidade. Quem nasce no Estado do Acre é acreano. Há também os acreanos por opção. E é assim há muito tempo, o que envolve toda uma História, uma bela e respeitável História. Há tradição e sentimento. Ser acreano não é algo que se adjetiva ou diminui por acordos, regras ou tratados. Ser acreano é algo único, é aptidão revolucionária, é a caracterização de um povo, e isto não é mutante. Ser acreano é perene! A palavra acreano também é perene, inclusive, pela aplicação da ortografia etimológica, que preserva palavras e suas letras de origem. Mudar acreano para acriano desvirtua e desnatura o que é natural, subtrai toda a carga histórica, detona o arcabouço cultural e fere o sentimento de um povo. Há componentes históricos e culturais inestimáveis. Há tradições imutáveis. Sendo assim, está bem adiante de mera regra ortográfica, que não passa de uma convenção bem restrita e de pequenos grupos, se comparada à convenção social, histórica e etimológica de um povo inteiro. O próprio texto do Acordo sustenta estas afirmações. Na Base V, que trata especificamente do caso das vogais átonas (parte que modificaria, em tese, acreano para acriano), se lê no item 1º que “ o emprego do e e do i, assim como o do o e do u, em sílaba átona, regula-se fundamentalmente pela etimologia e por particularidades da história das palavras...”. Antonio Houaiss, um dos idealizadores da Reforma, pronunciou:“Uma língua é muito mais que um meio de comunicação; ela é, sobretudo, um patrimônio historicamente construído pelas sociedades que a falam e, em muitos casos, também a escrevem... As variedades de uso fazem parte da língua e jamais estão sujeitas aos efeitos de atos normativos emanados de qualquer autoridade pública... Unificação ortográfica nada tem a ver com uniformização da língua. As línguas são como são em virtude do uso que seus falantes fazem dela, e não de acordos de grupos ou de decretos de governo”. (Escrevendo Pela Nova Ortografia’. 2ª edição. Rio de Janeiro: Instituto Antonio Houaiss. Publifolha, 2008). Quem escreve acriano é desinformado, descuidado e obedece, cego, a uma regra que nada diz. Aliás, quem escreve acriano obedece a uma regra de intenções pouco claras. E assim fazendo, comunga com os interesses menores daquela, é servil. Quem escreve acriano supõe estar obedecendo um Acordo, mas nem mesmo sabe a quem está servindo. Quem escreve acriano é ingênuo. E se tornará tolo e vazio, porque também tola é a regra, já que vazia de sentido lógico, prático, muito menos histórico, cultural ou etimológico. E mais. Quem escreve acriano desrespeita o Acre, sua história e sua gente, preferindo respeitar uma regra órfã, desafinada e desgovernada, que não conhece a academia das ruas, a língua dos mortais nem a linguagem do uso diário, comunicativo, que possibilita o entendimento simples e efetivo. Reforma e unificação em nome de quem e para quê? Será que Estados Unidos e Inglaterra, que falam inglês, aceitariam abrir mão de suas peculiaridades no trato do mesmo idioma, em detrimento das tradições de cada povo e de suas peculiaridades? Será que abririam mão do costume etimológico e da história, perdendo cada um, os seus traços individualizados? Ao contrário, como indica a lógica, o correto é manter a tradição linguística e a etimologia histórica dos termos e expressões, de acordo com os falantes, com as naturalidades e as regiões que usam um idioma, sem descaracterizá-lo, em prol de interesses menores e, em certos casos, puramente comerciais. Acrianoatenta contra a história do Acre e de seu povo, atenta contra um estado político e jurídico estabelecido e solidificado. E mais, atenta contra a soberania do acre, quanto a dispor de sua identidade, de sua tradição, de seus costumes e da vontade de seu povo, pois a mudança nos atinge inteiramente contra nossa prática histórica, etimológica, social, tradicional e política. E para quê? A toda hora é possível ver anúncios sobre a venda de um novo dicionário, atualizado pela Reforma, de uma gramática ‘reformada’, conforme o Acordo, de obras várias para entender o que mudou, para aprender como ficou etc. Pululam livros, gramáticas, dicionários e outras diversas publicações à venda, em face do “acordo”, sequer em uso efetivo na maioria dos países “acordantes”. Imaginem o retorno para autores, editores e editoras, livrarias, distribuidoras e gráficas. Não é tão difícil imaginar. Isso sem falar no grosso, que é a compra e venda de livros didáticos para a rede escolar, pública e privada, aqui, ali e alhures. Ainda que a Reforma não nos mostre claramente suas intenções, essa turma agradece. E os acreanos, vão apenas bater palmas? Pasquale Cipro Neto, conhecido professor de Português, com várias obras publicadas, questionado sobre a Reforma Ortográfica, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro deste ano, fez duras críticas às mudanças. Para o professor, a sua implementação produziu somente problemas para os cidadãos. Vejamos um trecho:"A reforma gerou confusão. O texto foi mal escrito e houve desperdício de dinheiro, água, papel e energia elétrica por um acordo que entrou em vigor precipitadamente, pois nem sequer Portugal ainda o adotou."(site Folha Online, junho de 2009). Para os acreanos, na parte que nos toca, o momento não é mais de consultar academias ou imortais. Nem sequer é de pareceres. O momento é de afirmar que a palavra acreano é significativa, tem uso secular, possui história ímpar, traduz cultura sólida e representa um povo, que tem direito fundamental à expressão da sua naturalidade. Além das academias, há todo um ordenamento jurídico para assegurar isto. E a palavra acreano está acima das academias e dos institutos, das reformas e dos acordos, pois é mais imortal que todos eles!

* Publicado originalmente no Jornal Página 20, em 04.10.2009.
* José Augusto Cunha Fontes da Silva é Juiz de Direito, titular do 1º Juizado Especial Criminal de Rio Branco (AC), e cronista acreano.